Dossiê "A Fé e o Império: do Padroado aos catolicismos lusófonos"

2024-09-12

A estreita relação entre a monarquia portuguesa e a Igreja Católica, que simbolicamente se representa pela expressão tão frequentemente utilizada de uma sociedade organizada entre “o trono e o altar”, não pode deixar de ser considerada como um dos pontos fulcrais na construção histórica das múltiplas formas de vivência da catolicidade que se encontram no mundo lusófono, e que aqui designamos como
catolicismos lusófonos.

A estreita relação entre estes dois universos de poder deve ser entendida numa dinâmica que antecede o próprio contexto expansionista que resultará na constituição destes catolicismos lusófonos e a organização e formalização da estrutura político-eclesiástica que os sustentará: o padroado ultramarino português.

Como Margarida Garcês Ventura salientou, desde as suas origens que a dinastia de Avis entende que a Igreja em Portugal tem uma função pública a exercer, função essa que contendia com as pretensões da hierarquia eclesiástica a uma completa autonomia de atuação (no exercício das chamadas “liberdades eclesiásticas”), mas à qual a Igreja se deveria submeter.


Como resultado desta visão dos monarcas de Avis, as épocas moderna e contemporânea vão assistir à formulação e aplicação de uma ampla política religiosa da monarquia portuguesa (e depois dela dos governos monárquicos liberais e republicanos), que se traduzirá na gestão interrelacionada de um conjunto de instituições religiosas católicas, bem como da intervenção nas mesmas, operada a partir de um
conjunto de prerrogativas formais sobre essas instituições que vão sendo concedidas pela Santa Sé à Coroa portuguesa (através de um conjunto de documentos jurídicos pontifícios), e através das quais a Coroa portuguesa objetivamente organiza a estrutura religiosa católica em Portugal e nos territórios da expansão, principalmente aqueles que constituirão o que hoje se designa por Lusofonia.

Não sendo uma submissão da Igreja portuguesa à Coroa, é, no entanto, a expectativa que a Igreja em Portugal (e nos territórios sob os quais atua ou atuará) exerça as suas atividades de acordo com as necessidades políticas da Coroa e os contextos sociais da comunidade que serve. Trata-se, em suma, de associar mais estreitamente os diversos níveis institucionais da Igreja, os que compõem as Igrejas diocesanas e as ordens e congregações religiosas, com a política religiosa pensada pelo poder monárquico.
Privilégios na indicação dos clérigos que ocuparão as prelaturas e os benefícios eclesiásticos têm resultados imediatos na condução da política religiosa da Igreja na lusofonia, a que se une a intervenção da Coroa na criação de circunscrições eclesiásticas, na construção de igrejas e outras estruturas afins, na fundação de
mosteiros e conventos, na organização de estruturas missionárias e no seu provimento de missionários (no que basta, como exemplo, recordar a proteção de D. João III na fundação da Companhia de Jesus), além do apoio às estruturas de vivência laica e de assistência na saúde e pobreza constituídas pelas múltiplas irmandades e confrarias que se espalham por tudo o mundo lusófono, e onde se deve destacar a importância das Santas Casas de Misericórdia.

A toda esta dinâmica que visa manter e aumentar o universo católico sob domínio, ou influência, da Coroa portuguesa, devemos ainda somar a política da Coroa no controle das mentalidades, que se operacionaliza a partir de um tribunal religioso, a Inquisição. Instituição estruturante no mundo lusófono, moldando mentalidades em Portugal, mas também ao longo de todo o espaço da expansão, não é possível escrever uma história da lusofonia sem atentar para o papel desempenhado pelo Santo Ofício na transformação
das culturas e das mentalidades, o que hoje nos convida a pensarmos os sujeitos históricos que com ele se relacionaram, abrindo a possibilidade de uma maior compreensão da influência deste tribunal sobre as estruturas políticas, sociais e culturais do mundo lusófono, bem como sobre as identidades e as mentalidades que se construíram nesse contexto a partir das histórias, experiências, trajetórias, lutas e
resistências dos sujeitos históricos que viveram sob a atuação inquisitorial.

Não constituindo uma “forma diferente de ser católico”, a ideia de catolicismos lusófonos, que propomos como norteadora deste dossiê centra-se nas diversas formas da experiência do ser católico, ou de estar inserido numa sociedade ou contexto marcados pela influência da cultura católica de expressão portuguesa. Ainda que as estruturas religiosas formais em que estas vivências e encontros se operam não constituam elemento diferencial objetivo em relação a outras experiências do ser, ou viver, católico,
é o conjunto da sua atuação, e os parâmetros em que esta se realiza, que nos permitem definir estas formas lusófonas da vivência da catolicidade.

Assim, propomos uma reflexão ampla, que una os trabalhos focados sobre a natureza das políticas religiosas lusófonas (pensada desde o exercício dos direitos de Padroado das monarquias portuguesa e brasileira, do seu exercício pela República, até as modernas relações Estado-Igreja nos diversos países da lusofonia), aos estudos da atuação das estruturas religiosas na sociedade. No entanto, e pensando a ampla
variedade das experiências históricas que a construção destes catolicismos lusófonos implicou, um dos enfoques fundamentais da nossa proposta de dossiê está nos trabalhos que nos ajudem a uma compreensão mais profunda das dinâmicas e processos constitutivos de inclusão e exclusão social que essa construção implicou, reconhecendo que a religião se apresenta como uma grande categoria sócio-política e cultural, utilizada na produção de discursos hegemônicos político-identitários, formados nos
diferentes períodos da modernidade e contemporaneidade do universo lusófono.


Pensar as práticas e representações do pertencimento religioso se tornou, portanto, um imperativo na abordagem da formação das culturas e identidades sociais e culturais das sociedades da lusofonia, conduzindo até as questões relacionadas com a consolidação das democracias do mundo contemporâneo.