Ébrios, bêbados e indignos: luteranos e as relações de poder em Santa Cruz do Sul

Resumo

Santa Cruz foi instalada como colônia para receber imigrantes alemães pelo governo da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul em 1849. Esse empreendimento, em consonância com os interesses imperiais, se tornou o principal centro de atração de colonos na segunda metade do século XIX no Brasil meridional. Junto com os imigrantes vieram expectativas de construírem um mundo novo, onde suas tradições pudessem ser cultivadas. Sociabilização, educação e religiosidade eram a faceta cultural dessas expectativas que logo preocuparam esses colonos. No que se refere ao aspecto espiritual, os colonos de Santa Cruz muito cedo tiveram atendimento de padres católicos e pastores luteranos. A comuna protestante, objeto dessa análise, foi fundada em 1862. Em 1865 passou a ser atendida de forma regular pelo pastor Bergfried, que permaneceu no cargo até 1874, quando retornou à Alemanha. Os anos seguintes foram tumultuados e são objeto desse trabalho. O objetivo do artigo é problematizar dois conflitos, que refletem relações de poder, ocorridos na comunidade luterana de Santa Cruz do Sul nos anos de 1870: o primeiro, que levou à divisão da comunidade e o surgimento de um grupo dissidente denominado Deutsch-Protestantische Gemeinde in Santa Cruz e, o segundo, um desentendimento em razão de obras no patrimônio da paróquia que se transformou num processo crime por injúria. A base empírica é formada pelos documentos oficiais da comunidade evangélica, em especial o livro de Atas e também dois processos por injúria que deram entrada na justiça e se encontram no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Esses documentos demonstram disputas que fogem ao “espírito ordeiro” dos colonos muitas vezes propalado pela historiografia laudatória ligada ao tema. O passado que se conta de pai para filho a respeito dos luteranos em Santa Cruz parece ser destituída de conflitos internos; se houve problemas entre os alemães, as dificuldades decorreram dos atritos entre católicos e protestantes. Em termos de análise serão considerados três elementos em especial: as relações de poder, a crise do capital social em razão da quebra da credibilidade interna e, por fim, a manipulação da memória com fins políticos.